Como alguns de vocês sabem, além de desenvolvedor e analista de sistemas, sou professor de idiomas. Há aproximadamente um mês atrás, enquanto dava uma aula de francês na escola em que leciono, falei sobre a mudança que ocorre nas línguas e a necessidade de um estudo profundo para entender essas mudanças. Acabamos chegando nos textos bíblicos como exemplo da necessidade de nos aprofundarmos na cultura e análise de vários textos de mesma época para entendermos o significado de certos textos. Dois de meus alunos então perguntaram: será que esses textos não foram adulterados?
Pensando nisso, resolvi escrever uma série de artigos sobre uma análise dos idiomas originais dos textos bíblicos: o hebraico, o aramaico e o grego koiné. O objetivo é analisar como a Bíblia como temos hoje chegou até nós. Qual é a fonte do texto bíblico? Foi adulterada? Se sim, qual o nível de adulteração que chegou? Essas perguntas são importantes para qualquer estudioso sério – quer ele acredite em Deus quer não.
As perguntas dos parágrafos acima sondaram minha cabeça por muito tempo até que decidi pesquisar a fundo. Quando adolescente, cheguei a estudar o Hebraico Clássico com professores totalmente neutros para responder a algumas de minhas dúvidas. Os artigos que vocês lerão são o resultado de novas pesquisas que fiz. As fontes encontram-se no fim de cada artigo.
A primeira parte da Bíblia
A primeira parte da Bíblia é geralmente conhecida como Velho Testamento ou, como alguns preferem, Escrituras Hebraico-Aramaicas. Para os Judeus devotos, porém, essa é a única parte do que hoje chamamos de bíblia que realmente vale. As Escrituras Hebraico-Aramaicas podem ser divididas em: Pentateuco (os primeiros 5 livros da Bíblia escritos por Moisés), Livros Históricos, Livros Poéticos e Livros Proféticos.
Acredita-se que os originais da Bíblia nos idiomas hebraico e aramaico foram registrados por homens como Moisés, Josué, Davi, Salomão, Isaías e muitos outros entre os anos 1513 AC e 443 AC. Até onde se sabe, nenhum desses textos originais foi encontrado e dificilmente será. Isso porque o tempo e outros fatores se comprometem a desgastar os frágeis e perecíveis materiais em que os textos originais eram escritos. Mesmo assim, desde o início, foi tomado muito cuidado em preservar o texto original e suas cópias autorizadas. Por exemplo, nos dias do rei hebreu Josias, por volta de 642 AC, relata-se na própria bíblia em 2 Reis 22:8-10 que o sacerdote judeu Hilquias disse: “Achei o livro da Lei na casa de Jeová”. O livro da Lei possivelmente se referia ao pentateuco ou torá, os primeiros livros das escrituras hebraicas, escritos por Moisés. Isso significa que os escritos originais encontrados já tinham cerca de 871 anos! O fato relatado é tão relevante que outros escritores da Bíblia como Jeremias e Esdras o registraram em seus livros.
Por que saber isso é interessante? Porque se o que eles acharam era realmente os originais, eles certamente fizeram comparações com as cópias existentes e fizeram novas cópias, baseando-se nos originais. Talvez aí já possamos eliminar 871 anos de erros nas cópias feitas.
Um tempo de cópias
Não haviam impressoras e scanners. Não haviam tipos e prensas. Tudo era copiado a mão. Os escribas judeus eram extremamente meticulosos ao fazerem suas cópias. Alguns deles contavam até mesmo o número de letras para garantir que, ao final da cópia manuscrita, não faltasse nenhuma letra ou palavra. Mesmo assim, erros aconteciam. Por quê?
Vários motivos contribuem para os erros nas cópias manuscritas: falta de luminozidade, vista cansada, leitura incorreta por parte de um ajudante, etc. Outra fato interessante que dificultava muito as coisas é que as palavras não eram separadas por um espaço como temos hoje… As palavras eram escritas tudo junto, separadas por preposições, artigos, etc. Mas tudo era escrito junto… Além disso, poderia acontecer (e realmente aconteceu) de que escribas achassem que alguma parte estava errada e tentaram corrigi-la… Mas daí, ao invés de corrigir, estragaram o significado original. Mesmo assim, a maioria dessas passagens já pode ser identificada e devidamente corrigida.
Quando começaram as cópias da Bíblia. Desde o escrito dos primeiros livros. Porém, foi depois do cativeiro dos hebreus em Babilônica que a demanda por cópias das Escrituras Hebraicas aumentou. Por volta de 537 AC boa parte dos judeus retornou a Jerusalém e à Palestina. Mesmo assim, milhares decidiram permanecer em Babilônia e em outros reinos.
Como de costume, muitos judeus faziam peregrinações anuais a Jerusalém. Segundo nos conta o escritor bíblico Esdras, os judeus ouviam nas festividades ofícios religiosos no idioma Hebraico. Não se sabe ao certo o ano, mas foi nessa época que surgiram as primeiras Sinagogas judaicas. As sinagogas eram locais de reunião, educação e adoração judaicas. Em cada uma dessas sinagogas havia uma “caixa” chamada genizah.
A genizah
A genizah, (גניזה, “armazenamento”), era uma caixa, gruta ou armário onde se colocavam cópias da bíblia hebraica e aramaica. Cada sinagoga possuía ao menos uma genizah. Por causa disso, as cópias da Bíblia hebraica e aramaica se multiplicaram aos milhares. Cada cidade do globo com certo número de judeus possuía ao menos uma sinagoga e suas próprias cópias da Bíblia.
Com o passar do tempo, os judeus colocavam na genizah manuscritos que não eram mais usados porque estavam rasgados ou desgastados. Esses manuscritos eram substituídos por outros. Como não se podia simplesmente jogar fora os manuscritos que contivessem o nome sagrado, YHWH (Jeová, Yaweh), eles eram depositados ali até que fossem devidamente enterrados. Durante séculos, milhares de manuscritos desaparecerem desse modo.
Em 1890, enquanto uma sinagoga na cidade do Cairo (Egito) estava sendo restaurada, o conteúdo da genizah foi reexaminado e seus tesouros foram sendo vendidos ou doados. Alguns manuscritos razoavelmente completos, assim como milhares de fragmentos (alguns dos quais foram datados do século 6 DC), chegaram à Biblioteca da Universidade de Cambridge e a outras bibliotecas na Europa e nos EUA.
Atualmente há mais de 6000 manuscritos contados e catalogados completos ou em partes de livros das Escrituras Hebraicas nas várias bibliotecas do mundo. Até meados do século passado, não havia muitos manuscritos anteriores ao décimo século DC. Então, em 1947 aconteceu algo incrível. Nas áreas ao redor do mar Morto foi descoberto o livro de Isaías e muitos outros escritos bíblicos e não bíblicos. Esses manuscritos encontrados estavam escondidos por mais de 1900 anos. Alguns foram catalogados como sendo dos últimos séculos antes de Cristo!
É com base nesses fragmentos e partes completas mais antigos das Escrituras Hebraico Aramaicos que a crítica textual estabelece uma base sólida para traduções da Bíblia e o entendimento do hebraico bíblico e transmissão do texto. Ou seja, hoje temos como saber de forma muito acertiva o que a maioria dos textos antigos realmente queriam dizer. Sabe qual o resultado? Descobriu-se que houve pouca adulteração significativa do texto original da Bíblia hebraica. A grande maioria das adulterações devia-se a erros de escrita e não troca de palavras proposital. Com base nisso, pode-se estabelecer uma base para futuras traduções.
Bibliografia
Livro “Toda a Escritura é Inspirada por Deus e Proveitosa”. Publicado pela Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados. Disponível em: https://wol.jw.org/pt/wol/d/r5/lp-t/1101990132. Acesso em 01/05/2018. Páginas 305 e 306.
Antigo Testamento Interlinear Hebraico Português – Volume 1 – Pentateuco. Professor Dr. Edson de Faria Francisco. Publicado pela Missão da Sociedade Bíblica do Brasil. Prefácio.
Medieval Histories. The Genizah of Medieval Cairo. Disponível em: http://www.medievalhistories.com/genizah-medieval-cairo-discarded-history/. Acesso em 01/05/2018.