Inovação Religiosa e Percepção de Seita: uma Perspectiva Acadêmica

Durante meu percurso no curso de Ciências da Religião, parte do meu currículo no Bacharelado em História, Arqueologia e Ciências da Religião (Université Laval, Québec), tive a oportunidade de me aprofundar no estudo dos chamados “novos movimentos religiosos” e do fenômeno das “seitas”. Este é um campo de estudo controverso, frequentemente envolto em paixões e preconceitos. Para entender melhor essa área complexa, tive o prazer de aprender com especialistas como Alain Bouchard (Chargé d’enseignement à la Faculté de théologie et sciences religieuses da Université Laval), cujas pesquisas oferecem uma visão acadêmica que desafia as narrativas populares.

O problema do termo “seita”

Um dos primeiros pontos cruciais que aprendi é a problemática do termo “seita”. Conforme explica Alain Bouchard em uma de suas aulas, o termo “seita” é historicamente e academicamente carregado de conotações negativas e polêmicas. Originalmente usado em contextos cristãos (explorarei isso mais abaixo) para designar o “outro”, ele se tornou sinônimo de algo necessariamente negativo. Nenhum grupo religioso, até onde se sabe, se autodefine como “seita”. Embora sociólogos como Max Weber tenham utilizado o termo, era como um “tipo ideal” que não existe perfeitamente na realidade e que se baseava em um contexto histórico diferente (Europa do final do século XIX/início do XX).

A noção de “seita” hoje é frequentemente uma construção cultural. As organizações anti-seita, como a Miviludes na França, utilizam critérios considerados fluidos ou frouxos, como desestabilização mental, exigências financeiras exorbitantes, ruptura familiar e discurso antissocial. No entanto, ao analisar esses critérios, percebe-se que eles podem ser aplicados a diversos contextos que não são tipicamente considerados “seitas”, e frequentemente não se sustentam sob escrutínio. A percepção negativa muitas vezes é influenciada pela mídia e por “lendas urbanas”.

Critérios usados por associações próximas à Miviludes (como a UNADFI), como o papel subalterno da mulher ou o ensino religioso às crianças qualificado como endoutrinação, são criticados por Bouchard como problemáticos, pois essas situações existem em muitos outros contextos sociais e religiosos e não são exclusivas dos grupos visados. Segundo ele, a atuação dessas organizações parece mudar de foco com base nas preocupações sociais e midiáticas do momento.

A criação e atuação dessas missões interministeriais na França é criticada por, inicialmente, não ter contado com a participação de especialistas no fenômeno religioso. O fato de a Miviludes ser liderada por um político também pode indicar que sua agenda e critérios são influenciados por pressões políticas ou sociais, e não apenas por uma análise neutra e acadêmica.

A forma como encaramos um grupo religioso pode ser uma questão de “feeling” ou percepção, como o contraste na visão pública entre Testemunhas de Jeová envolvendo crianças em suas atividades proselitistas e monges budistas tibetanos. Em ambos os casos, há um envolvimento significativo e precoce de crianças na vida religiosa do grupo. As Testemunhas de Jeová levam seus filhos no trabalho porta a porta, enquanto no budismo tibetano, crianças a partir de 5 ou 6 anos são enviadas para viver em monastérios até a adolescência. As pessoas tendem a taxar as Testemunhas como seita, já o budismo tibetano não – ele é visto de maneira idealizada pela Sociedade Ocidental. Para Alain Bouchard, a “seita” é, em última análise, a inversão de “nós”.

Em vez de “seita”, no meio acadêmico, termos como “novos movimentos religiosos” (uma tradução do termo padrão na literatura anglofona), “novas religiões“, ou “inovação religiosa” são preferidos. Esses termos buscam ser mais neutros e descritivos, embora também apresentem desafios (por exemplo, o que é considerado “novo”?).

Outro motivo para evitar o uso do termo “seita” é o fato de ele estar geralmente ligado diretamente com a Teologia de certas religiõese não com o estudo da Ciência da Religião. Não raro, uma faculdade de Teologia filiada a certa instituição religiosa irá declarar como “seita” qualquer religião que se desvie dos dogmas e costumes que Ela mesmo considere como os corretos.

Por exemplo, uma instituição de ensino filiada a uma Igreja Protestante clássica tenderá a ensinar que Mórmons, Adventistas e Testemunhas de Jeová são seitas, já que não seguem o que uma Igreja Protestante clássica considera como ortodoxo. Sendo assim, o uso da palavra “seita” nada mais é do que, como disse Bouchard, uma “inversão de ‘nós'”. O grande problema aqui é todo o sentimento negativo que essa palavra carrega – não se trata apenas de uma “separação”, mas de algo que deve ser evitado a todo custo por ser “maligno, oculto, repressor”. Há uma confusão teológica sobre “seita” e “heresia”.

A figura do Gurú

Outro estereótipo comum é a figura do gurú como um líder que exerce submissão total sobre seus adeptos. No entanto, as pesquisas, incluindo aquelas às quais Alain Bouchard se refere, desafiam essa imagem. O termo “gurú” ganhou popularidade na América do Norte nos anos 1970 devido à chegada de mestres espirituais da Índia após mudanças nas políticas de imigração. Academicamente, o que observamos é a criação de uma comunidade em torno do que sociologicamente chamamos de carisma.

Alain Bouchard explica que o carisma, na perspectiva sociológica de Max Weber, não é apenas uma qualidade inata do líder, mas uma construção coletiva, uma dinâmica que surge da interação entre o líder, os adeptos e o grupo. Existem diferentes tipos de autoridade carismática (teocrática, eletiva, baseada em qualidades pessoais, hereditária, burocrática). Além disso, o carisma passa por um processo de rotinização ou institucionalização à medida que o grupo se estrutura, distanciando-se da emoção inicial para adotar regras e mecanismos de controle e legitimação.

Lavagem cerebral?

Quanto ao percurso do adepto, a ideia popular de “lavagem cerebral” ou de ser facilmente “fisgado” é desmentida pelas pesquisas. O futuro adepto é frequentemente um “caçador-coletor da modernidade”, alguém com interesse por questões religiosas e em busca de sentido. Essas pessoas possuem uma disponibilidade (estrutural, cultural, religiosa) para se envolver em uma busca espiritual. O contato inicial é frequentemente mediado por laços afetivos, amigos ou conhecidos. A conversão é, na verdade, uma jornada com um baixo índice de sucesso para os grupos (apenas cerca de 10% daqueles que exploram acabam se convertendo, como observado em estudos como o de Eileen Barker sobre a Igreja da Unificação). As motivações para a adesão são diversas e incluem a busca por comunidade, a experiência religiosa, a saúde e o bem-estar.

O conceito de “lavagem cerebral” é uma ideia popular frequentemente associada aos “novos movimentos religiosos” e ao fenômeno das “seitas”. No entanto, a pesquisa acadêmica sobre o tema oferece uma perspectiva muito diferente e complexa que desafia essa noção simplista.

  1. A Hipótese Popular: A ideia de “lavagem cerebral” ganhou força, especialmente nas décadas de 1970 e 1980. A teoria sugere que esses grupos utilizam técnicas de manipulação mental para recrutar e controlar indivíduos, transformando-os contra sua vontade. Essa hipótese foi reforçada por depoimentos e obras populares.
    • A imagem associada é a de um líder (gurú) que exerce submissão total sobre adeptos passivos, que seriam facilmente “fisgados” ou “enlaçados”. Critérios usados por algumas organizações “anti-seita”, como “desestabilização mental”, parecem ecoar essa ideia.
    • Essa narrativa popular sugere que a conversão a esses grupos é resultado de uma técnica infalível que anula a vontade do indivíduo.
  2. A Perspectiva da Pesquisa Acadêmica: Contrariamente à hipótese da “lavagem cerebral”, a pesquisa acadêmica, incluindo estudos referenciados por Alain Bouchard, demonstrou consistentemente que essa ideia não se sustenta.
    • Não é Manipulação Inconsciente: Estudos provaram “fora de qualquer dúvida que a conversão às novas religiões não foi um ato de manipulação sem o conhecimento do adepto, mas sim uma jornada que se encaixa em uma busca por identidade típica do nosso mundo moderno”. Os adeptos “parecem ser muito ativos, livres e conscientes em sua jornada de convertidos”.
    • O Perfil do Adepto: O futuro adepto não é uma vítima passiva, mas sim um “caçador-coletor da modernidade“, alguém interessado em questões religiosas e em busca de sentido. Eles possuem uma “disponibilidade” (estrutural, cultural, religiosa) que os torna abertos a essa busca. A ideia de que “poderia ser eu” (alguém sem interesse prévio) a ser “fisgado” é refutada pela pesquisa; é necessário ter interesse religioso.
    • Baixa Taxa de Sucesso na Conversão: A imagem de “entrada fácil” é um clichê. A conversão é, na verdade, uma jornada com uma taxa de sucesso muito baixa para os grupos. Como mencionado anteriormente, estudos como o de Eileen Barker sobre a Igreja da Unificação, que explicitamente testou a hipótese da lavagem cerebral, mostraram que apenas cerca de 10% daqueles que exploram o grupo chegam a se converter. Isso contradiz diretamente a ideia de uma técnica infalível.
    • Falta de Submissão Total: A ideia de um gurú que exerce submissão total não é bem documentada na maioria dos casos. Há casos extremos e isolados, claro. Mas o que se observa é a criação de uma comunidade em torno do que sociologicamente se chama de carisma, que é uma construção coletiva. Mesmo em grupos considerados clássicos exemplos de “seitas”, a pesquisa no terreno não encontrou submissão total generalizada.
    • A Experiência de Saída: A maioria esmagadora dos adeptos sai dos grupos (cerca de 75% saem, em média após 3 anos). Mais importante, a maioria dos ex-adeptos (cerca de 85%) avalia sua experiência como positiva. Uma pequena porcentagem (cerca de 9%) são os chamados “apóstatas”, que têm uma experiência negativa e tendem a culpar o grupo, sentindo-se manipulados.
    • Reforço pela Retórica “Anti-Seita”: A crença em ter sido manipulado está correlacionada com o contato com organizações “anti-seita”. Esses grupos frequentemente oferecem um “cenário” pronto (“é culpa do grupo, você foi manipulado”) que valida a experiência negativa do ex-membro.
    • Explicação para Pessoas Qualificadas: A hipótese da “lavagem cerebral” não consegue explicar por que pessoas com alta escolaridade ou posições sociais proeminentes aderem a esses grupos. A perspectiva acadêmica que considera a “disponibilidade” individual e a busca por sentido oferece uma explicação mais plausível.
  3. Conclusão Acadêmica: Para os pesquisadores como Alain Bouchard, o conceito de “lavagem cerebral” é, em grande parte, uma construção cultural e uma questão de percepção. Ele serve a um propósito social de demonizar o “outro” ou de explicar fenômenos que desafiam as normas sociais tradicionais. A pesquisa de campo e os estudos quantitativos indicam que a adesão e a saída desses grupos são processos complexos, envolvendo busca pessoal, dinâmicas de grupo e fatores sociais, muito distantes da ideia de uma técnica de controle mental irresistível.

Saída difícil?

Um ponto particularmente interessante é a experiência de saída dos grupos. Alain Bouchard, citando pesquisas como as de Roland Chagnon e Susan Palmer, aponta que a saída é muito comum (cerca de 75% dos adeptos saem). Em média, os adeptos permanecem por cerca de três anos. É claro que esses são valores aproximativos e gerais, cada grupo tem suas particularidades.

Contraintuitivamente para a imagem popular, a maioria dos ex-adeptos (cerca de 85%) avalia sua experiência como positiva, e 67% sentem que se tornaram pessoas melhores após ela. Uma pequena porcentagem (9%) são os chamados “apóstatas”, que têm uma experiência negativa e tendem a culpar o grupo, muitas vezes encontrando apoio em organizações anti-seita que reforçam essa narrativa. A experiência em um novo movimento religioso pode ser interpretada, conforme Susan Palmer propõe, como um rito de passagem, um período de afastamento do mundo “febril” para um reencontro consigo mesmo e uma exploração de novas potencialidades.

Ao analizar algumas pesquisas, Bouchard percebeu que esses “apóstatas” são frequentemente “acolhidos por organizações ou milieux” (organizações ou ambientes) que os apoiam e reforçam a ideia de que foram manipulados e que a culpa é do grupo. Especificamente, são mencionados os “grupos anti-seitas”, citando a Mivilud na França como um exemplo. Para Bouchard, pode-se traçar um paralelo entre os argumentos utilizados pelos apóstatas para culpar o grupo e os argumentos usados em casos de divórcio onde uma das partes busca imputar a responsabilidade da separação à outra.

No Québec

A emergência significativa desses grupos nas décadas de 1960 e 1970 em Québec não foi aleatória. O Professor Bouchard contextualiza isso em profundas transformações sociais e legais. Fatores como o reconhecimento da liberdade religiosa (marcada por casos como o de Frank Roncarelli e as Testemunhas de Jeová x o Primeiro Ministro do Québec, Maurrice Duplessis, no Canadá em 1959), a abolição de cotas de imigração que permitiram a chegada de diversas tradições religiosas, e um período de boom econômico e social (democratização da educação, Expo 67 em Montreal, movimentos sociais como os de 1968) criaram um terreno fértil para a inovação religiosa. A experimentação com drogas psicodélicas também contribuiu para um foco na expansão da “consciência”. A presença desses temas na cultura popular, exemplificada pela canção “My Sweet Lord” de George Harrison em 1970, reflete essa mudança de panorama.

Em resumo, o estudo acadêmico dos novos movimentos religiosos, como o que aprendi com o Professor Alain Bouchard, revela um fenômeno muito mais complexo e matizado do que a caricatura popular da “seita perigosa” sugere. Longe de serem anormais, esses grupos são, em muitos aspectos, produtos da atividade cultural em sociedades livres e democráticas. Eles servem como um “laboratório extraordinário” para compreender a dinâmica da religião, a busca por sentido dos indivíduos e as transformações sociais em nosso mundo contemporâneo.

Fontes e Referências

Barker, Eileen. The Making of a Moonie: Brainwashing or Choice? Oxford: Blackwell, 1984.

Palmer, Susan J. Aliens Adored: Raël’s UFO Religion. Rutgers University Press, 2004.

Mayer, Jean-François. Les Nouvelles Religions. PUF, 1993.

Introvigne, Massimo. Pour en finir avec les sectes. Dervy, 1996.

Anthony, Dick; Robbins, Thomas. “Law, Social Science, and the ‘Brainwashing’ Exception to the First Amendment,” Behavioral Sciences and the Law, 1992.

Gauvreau, Michael. The Catholic Origins of Quebec’s Quiet Revolution. McGill-Queen’s University Press, 2005.

MIVILUDES, Rapport annuel 2022-2024, https://www.miviludes.interieur.gouv.fr/publications-de-la-miviludes/rapports-annuels.

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